As pisadinhas da Rua Raimunda
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Ilustração: reprodução / Thiago Vidal. Pra cego ver: desenho de quatro bonequinhos, sem cabelo e rosto, correndo um atrás do outro, na mesma posição. Cada um tem cor, em tom de pele, diferente. A metade de baixo da imagem mostra a sombro deles simetricamente. |
Por Espedito Duarte
(Conto fictício inspirado em relatos reais)
“Bem que Maria disse” falei pra mim mesma enquanto saia da rede devagar sem querer fazer barulho, calçando o chinelo no pé e indo em direção a porta brechár a assombração. Eu sou até medrosa, mas também sou curiosa, e sou muito mais curiosa do que medrosa. Eu me chamo Alana, e fiquei acordada até tarde da noite pra tentar ver uma assombração.
Um dia antes minha mãe estava conversando com a vizinha na calçada daqui de casa “Maria, pois num é que as pisadinhas voltaram mesmo”. Eu cheguei de intrometida “Mãe o que é isso?” Mas ela não quis dizer, disse que não era coisa pra criança saber. Mas como sou muito curiosa esperei ela entrar pra dentro de casa e fui falar com Maria, e se tem uma coisa que Maria gosta de fazer é conversar, seja lá sobre o que for. “Ei Maria, que história é essa que as pisadinhas voltaram? O que é isso?“ Maria respondeu debochada “Agora deu pra enfrentar até assombração menina?” Maria sempre me chama pra tirar os sapos e rãs que entram na casa dela, coisas que ela morre de medo, por isso diz que eu não tenho medo de nada. Acho que foi por isso que eu nem precisei pedir muito e ela contou a história das pisadinhas “Não é um tipo de assombração perigosa, é mais brincalhona até. Há muito tempo, as pessoas dessa rua costumam ouvir passos ligeiros passando pelas calçadas, bem tarde da noite, como se fossem pezinhos rápidos de crianças indo e vindo sem cansar. Nunca ninguém viu a figura dona dessas pisadinhas, mas todo mundo dessa rua já escutou. Sua mãe costumava ouvir muito, mas disse que elas haviam parado , e agora voltaram a aparecer".
Depois que eu saí da casa de Maria comecei a bolar meu plano, que consistia em não dormir, ir para a sala, armar a rede ficar deitada e atenta, era simples. Minha mãe nem desconfiava, sou ótima em guardar meus planos muito bem guardados. Quando anoiteceu eu não conseguia parar de pensar nas pisadinhas. será que são duendes pequenos roubando doces das budegas? Ou são fadas que cansaram de voar e aproveitam a noite enquanto ninguém está olhando para esticar um pouco as pernas? Nunca desejei tanto que a noite entardecesse, e quando deu a hora fui pra meu quarto dormir, ou melhor, esperar. Eu não sabia a hora, mas quando minha mãe apagou todas as luzes, sai da cama e fui para a sala, armei a rede assim como nos meus planos, e fingi que estava dormindo, pra deixar as fadas, ou duendes, a vontade para brincar na minha calçada. Eu esperei, acabei cochilando, e acordei me dando bronca. Lembrei que o medo tira o sono, então comecei a imaginar que as pisadinhas eram de pequenos demônios correndo direto do inferno, mas imaginar pequenos demoniozinhos era muito engraçado e eu ri. Imaginei que poderiam ser os brinquedos de todas as crianças da minha rua, se reunindo para bolar um plano contra seus donos, mas isso era legal. Nada que eu pensasse me dava medo, eu ia acabar sendo vencida pelo meu sono e todo o meu plano ia por água a baixo. Quase foram, até que eu consegui pensar em alguma coisa pavorosa, eu imaginei que as pisadinhas vinham de crianças mortas do cemitério, todas cadavéricas procurando almas vivas para brincar, e isso me assutou. Eu quase voltei para meu quarto, mas depois de ter pensado em tantas criaturas que poderiam ser os pequeninos donos das pisadinhas, estava mais curiosa que nunca. Esperei, acho que já era madrugada, “não vou desistir, voltarei amanhã, e depois, e depois”, já me preparava para abortar a missão daquela noite, quando tive a impressão de ter escutado algo bem sorrateiro.
Estava de corpo inteiro submerso na rede, então coloquei só a cabeça para fora, abrindo caminho para os ouvidos ouvirem melhor. A terceira parte do meu plano estava em execução, fiquei atenta e pude escutar os barulhos da noite, principalmente os miudinhos. Meus instintos começaram a aflorar, minha pupila dilatou, senti meu ouvido selecionando os barulhos, ouvi o vento na rua, o balanço das portas, o ronco da rede, isolei todos eles e foquei no silencio, era nele que as pisadinhas iriam ficar perceptíveis. Poucos minutos depois, aqueles pesinhos pequeninos se fizeram notar, e eu quase não acreditei de emoção quando escutei os passos ligeiros passando na minha calçada. Foi tão rápido, não deu tempo prestar atenção, quando dei fé já tinha sumido. Sentia medo e alegria, era estranho lidar com dois sentimentos que geralmente não andam juntos. Para meu contentamento, as pisadinhas apareceram novamente, então tratei de sair da rede com muita cautela, não podia fazer barulho e espantar as criaturinhas. Segurei a rede para não balancar, e quando ficou imóvel, rastejei até a porta, lá tinha uma brecha enorme entre a parte de cima e a parte de baixo, exatamente onde meus olhos alcançavam. Eu via a rua, a luz dos postes, a sombra das árvores, mas estava muito acima das pisadinhas, eu tinha de abrir a parte de baixo da porta, para flagrar os pequeninos na carreira. Esperei as pisadinhas passarem só mais uma vez, estava juntando coragem para dar fim a minha investigação e finalmente descobrir quem eram os responsáveis por elas “na próxima eu abro de imediato”, já tinha destrancado a porta de baixo, só precisava de um leve puxão para abri-la. Eu estava tensa, aflita, nervosa, e os segundos pareceram congelar no tempo. De repente escutei as pisadinhas, e tentei ser tão ligeira quanto elas, abri a porta de baixo e corri pra fora. Não vi nada, olhei para todos os cantos, para cima e para baixo, mas nem o barulho existia mais. Um cachorro começou a latir para mim, “está caçando os pequeninos cachorrinho?”. Voltei para dentro de casa, pensativa e cheia de hipóteses: Eles são invisíveis? Correm na velocidade da luz? São do tamanho de uma pulga mas fazem barulho como uma criança?”. Se ao menos tivessem esperado, queria lhes perguntar de onde vieram, o que fazem aqui, e por que correm tão rápido. Será que estão fugindo de alguém malvado, ou são os malvados correndo atrás dos bonzinhos? Minhas dúvidas não teriam respostas, pois eu tinha revelado o meu disfarce de criança dormindo. Minha mãe acordou com o rangido da porta, “Alana, o que está fazendo abrindo a porta a essa hora da madrugada?” Eu contei todo o meu plano para ela, e também minhas hipóteses sobre as pisadinhas. Minha mãe riu “Alana, eu acho que as pisadinhas não tem dono nenhum, acho que elas existem no mundo como pisadinhas. Quando a gente anda, fazemos barulho, elas devem ser barulho só que sem ninguém ter feito. Eu e todo mundo dessa rua já tentamos vê-las, mas nunca ninguém conseguiu. Elas chegam e somem, e aposto que se divertem muito nos vendo com cara de trouxa saindo para fora de suas casas e voltando decepcionados. Foi só assim que eu consegui descansar, quando parei de procurar um corpo para as pisadinhas, e reconheci as pisadinhas como seres completos. Eu não quis lhe contar sobre elas por que sabia que ia tentar vê-las, e sabia que não conseguiria.”
Minha mãe é a mulher mais inteligente que eu conheço. Fiquei animada com a história dela, e agora as pisadinhas estavam muito mais interessantes que antes. Minha mãe me levou para a cama, eu estava com muito sono mesmo. Aposto que achava que eu estava satisfeita. Por aquela noite sim, mas não me contentei em saber que as pisadinhas eram um ser de barulho, agora novas dúvidas surgiram: O que será que elas comem? Se eu gravar o barulho num gravador será que prendo elas? Se elas existem como barulho então se pararem deixam de existir e é por isso que ficam indo e vindo nas calçadas? minha investigação não havia chegado ao fim, ela havia apenas começado.